O Ciclismo 24 por 24 é parceiro da WebSummit Lisboa desde o primeiro dia. Nesse sentido, o projecto foi ao encontro de uma das melhores ciclistas de sempre – a neerlandesa Demi Vollering, numa conversa que agora fica disponível para o mundo.

Versão original (em inglês) disponível aqui!

Ciclismo 24 por 24: Apesar de toda a tecnologia disponível hoje em dia, permaneces um ser humano. Perdeste o III Tour de France por quatro segundos. Como lidaste com isso? Quais foram os sentimentos nos dias seguintes?
Demi Vollering: Foi realmente devastador. Mas é importante manter todos esses números, embora também se deva ouvir realmente os sentimentos. Por exemplo, se dormires muito mal e no dia seguinte tiveres um treino muito duro, não se deve olhar apenas aos números. Também é preciso seguir o que sentes, e pensar: “Ok, é isto que o relógio diz, mas como me sinto?”. E então decidir se se vai fazer esse treino intenso ou não. Depois do Tour de France eu precisava mesmo de recuperar. Portanto, sim, é importante acompanhar os dados, mas também saber que mentalmente pode ser preciso mais tempo para processar tudo.

Ciclismo 24 por 24: E agora, qual é o seu sentimento sobre esse resultado? Sentes que foi bom ou que podias ter feito melhor?
Demi Vollering: Quer dizer, eu podia ter ganho o Tour de France, por isso é um pouco amargo para mim. Mas, por outro lado, deu-me uma grande lição de vida. Estou muito feliz por isso. Acho que isso vai ajudar-me muito no futuro, em grandes corridas, onde vou ter muita pressão. Eu queria muito ganhar o Tour de France, claro. Mas o medo de perder era quase maior do que a vontade de vencer. Então, depois de perder o Tour de France, essa vontade de vencer tornou-se gigante novamente porque eu já o tinha perdido. Vivi a experiência. Aconteceu-me. Agora sei que, no futuro, é nessa vontade de vencer que devo focar-me, e não no medo de perder. Isso é importante.

Ciclismo 24 por 24: Pela primeira vez em quase 10 anos de carreira profissional, vais para uma equipa estrangeira… Por quê essa mudança neste ponto da tua carreira?
Demi Vollering: Excelente pergunta. Comecei a perceber que precisava de uma mudança. Precisava de sair um pouco da zona de conforto novamente para procurar esse ponto onde posso crescer. Então comecei a falar com algumas equipas. Para ser honesta, no início não estava muito entusiasmada com a equipa francesa. Mas assim que tivemos a primeira conversa eu vi o “fogo” deles… A FDJ estava realmente interessada em mim. Senti logo aquela ligação, aquela conexão. Vi muitas pessoas realmente apaixonadas, que estavam muito motivadas para ter sucesso, mas também para começar a trabalhar comigo. E isso foi algo de que gostei muito. Como atleta, dou sempre o meu melhor para melhorar todos os dias. E também espero isso das pessoas com quem trabalho. E vi isso neles. Vi que realmente queriam algo. Pareceu-me muito bom. Foi também uma decisão que tomei com o coração… E depois comecei a pensar: sim, na verdade faz todo o sentido, sabes? Eu quero ganhar o Tour de France e vou para uma equipa francesa. No final, não foi um passo estranho para mim.

Ciclismo 24 por 24: Vivemos num tempo em que 99% das tuas corridas são transmitidas pelo Eurosport. Ter as tuas corridas na televisão aumenta a pressão em ti e para ti? Por exemplo, pensas no número de pessoas que te reconhecem na rua? Sentes isso, ou é algo normal para ti?
Demi Vollering: Claro que sinto, também porque, no geral, o desporto feminino está a crescer. Então, sim, temos ganho muitos fãs ao longo dos anos. Vejo isso todos os anos nas corridas. É quase o triplo do número de pessoas que vêm assistir antes, durante ou depois das provas. É algo muito giro de ver. Claro que, às vezes, é um pouco difícil estar tanto em destaque. Mas sei que também é uma espécie de elogio, porque as pessoas estão interessadas no desporto. E isso é algo muito especial. Tenho consciência disso. E sei que sou um dos rostos do ciclismo, do desporto feminino. Tento também usar isso de forma positiva.

Ciclismo 24 por 24: E os teus pais? A tua família? Acreditaram no teu sonho? Apoiaram-te sempre? Como vêem a tua carreira?
Demi Vollering: O meu pai tem a sua própria empresa. Ele cultiva flores, por isso sempre tive a mentalidade de trabalhar arduamente, mas também de nunca me contentar com menos do que os meus sonhos. A lição que sempre recebi dos meus pais foi que não é importante correr atrás do dinheiro, mas sim perseguir a paixão e, com isso, tornar-se o melhor naquilo que se ama. Eventualmente, também se acaba por ter um bom salário. Se fores o melhor no que fazes, o resto virá naturalmente.

Ciclismo 24 por 24: Lembras-te da tua primeira vitória, do teu primeiro resultado importante como ciclista profissional? Ainda o tens presente?
Demi Vollering: O que me vem logo à cabeça é o 3.º lugar na Liège-Bastogne-Liège, em 2019 porque foi o meu primeiro ano enquanto profissional. E em Liège subi logo ao pódio. Por isso, esse foi muito especial. Foi também aí que percebi que o ciclismo era o lugar onde eu queria mesmo estar.

Ciclismo 24 por 24: Agora é tempo de falar sobre o equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal. Achas que é mais difícil para as mulheres do que para os homens, por exemplo? Notas alguma diferença nisso desde que começaste até agora?
Demi Vollering: Sim, claro. Quando entrei no pelotão profissional, em 2019, ganhava apenas algumas centenas de euros por mês e agora já é muito diferente, por exemplo. Desde que entrei no desporto tudo mudou muito. Por exemplo, desse ano em que fiquei em 3º na Liège, não se encontra nenhuma imagem minha a sprintar para o pódio. É estranho pensar que foi apenas em 2019, e agora já chegámos aqui. E ainda assim, nem tudo é transmitido. Mas o crescimento que tivemos é impressionante. É algo de que tenho muito orgulho.
Acredito que nós, mulheres, sempre tivemos de lutar um pouco mais para ter as mesmas oportunidades que os homens. A minha geração conhece bem essa luta. Todas viveram o facto de que o desporto feminino ainda não era realmente algo. Então compreendemos muito bem que ainda temos de lutar um pouco por isso e dar sempre um pouco mais.
Quanto à diferença entre homens e mulheres… Acho que os homens arriscam um pouco mais. E as mulheres, antes de mais nada, querem sempre saber tudo sobre o assunto em que se estão a envolver. Se um patrocinador vem ter com uma mulher e lhe pergunta: “podes fazer isto e aquilo por nós?”, ela responde “sim, claro”, mas quer envolver-se. Tenta perceber exactamente o que é e fazer o melhor possível. Enquanto os homens talvez sejam mais “sim, claro que faço”, e depois vão improvisando. Acho que as mulheres estão muito mais envolvidas com os patrocinadores, por exemplo.

Ciclismo 24 por 24: Isso leva-nos, por exemplo, à tua imagem como atleta. Achas que as ciclistas tratam melhor da sua própria imagem do que, por exemplo, os homens, porque se envolvem mais? Essas diferenças devem existir ou deviam ser eliminadas?
Demi Vollering: Sim, sim, sim. Acho que o que subestimamos um pouco é que deveríamos tratar o desporto feminino também de forma um pouco diferente. É muito importante termos as mesmas oportunidades. Mas não devemos tentar copiar tudo dos homens para as mulheres, como ter o mesmo número de dias de corrida ou as mesmas distâncias. No fim, devemos ter orgulho no desporto feminino por ser um pouco diferente. Somos simplesmente diferentes, sabes? E já ouvi muitas vezes que as pessoas acham as corridas femininas muito mais interessantes de ver do que as masculinas porque são mais explosivas, por exemplo. Isso também acontece porque as etapas ou as corridas são mais curtas. Por isso começamos a atacar mais cedo. Por que haveríamos de mudar isso? Talvez seja interessante manter as corridas um pouco mais curtas. É interessante ver alguma diferença, talvez. Mas o mais importante é que todos tenhamos as mesmas oportunidades.

Ciclismo 24 por 24: No final, a diferença e o respeito por ela é o que torna este mundo um lugar melhor. Se tudo fosse igual, não faria sentido haver 7 mil milhões de pessoas no mundo.
Demi Vollering: Exactamente, acho que se trata de igualdade de oportunidades. Nem tudo tem de ser igual.
Ciclismo 24 por 24: Por exemplo, enquanto te escutava, pensei em muitos exemplos de ciclistas femininas que ficaram grávidas e tiveram de interromper a carreira. Enquanto muitos ciclistas homens dizem: “sim, fui pai. Fixe.
Demi Vollering: A mulher deu à luz ontem e hoje ele tem uma corrida, sim! (risos)

Ciclismo 24 por 24: Recentemente aconteceu a segunda edição do Prémio de Ciclismo de Lisboa. A corrida feminina de juniores teve apenas duas atletas. Duas. Eram cerca de 50 inscritas mas só duas apareceram para correr. As outras não vieram porque ou era demasiado longe ou simplesmente não estavam motivadas.
Demi Vollering: Então só duas mulheres apareceram…
Ciclismo 24 por 24: Sim.
Demi Vollering: Entre homens ou…
Ciclismo 24 por 24: Não, elas tinham uma corrida normal para. Começaram antes dos homens, mas só duas.
Demi Vollering: As pessoas precisam de se inspirar para realmente ter a ideia de pegar numa bicicleta e começar a pedalar. Na minha opinião, se as mulheres não sabem que existimos como ciclistas profissionais, então também não podem sonhar em tornar-se numa. Por isso acho muito importante darmos o exemplo.

Ciclismo 24 por 24: Provavelmente, mais do que a visibilidade, é o investimento monetário que os pais têm de investir sem qualquer garantia de sucesso ou futuro.
Demi Vollering: Sim, sim, claro.
Ciclismo 24 por 24: O maior problema em Portugal não é sobre homens ou mulheres. Por cada João Almeida que o país tem, perdeu provavelmente 10 melhores do que ele. Melhores do que ele.
Demi Vollering: O que queres dizer com isso?
Ciclismo 24 por 24: Há 10 anos, uma bicicleta normal para competir custava 500, 800 euros. Hoje em dia, uma bicicleta normal para um miúdo competir custa cerca de 2 000 euros. Um ano. E depois mais e mais outro. No fim, desistem. Grandes talentos bateram o João Almeida nas categorias jovens… Nenhum deles continua a correr. Desistiram. Muitos deles nos sub-23 porque não conseguiram um contrato profissional decente. Não é sobre homens ou mulheres, é sobre a federação e a forma como se promove o ciclismo. E, claro, sobre a cultura desportiva portuguesa em geral.
Demi Vollering: O que temos na Holanda são as Banden Races – se traduzir, significa “Corridas de Pneus Gordos”. É antes de um critério profissional. Consistem em corridas de uma ou duas voltas curtas, com uma bicicleta escolar normal. Por isso qualquer criança pode participar. Foi assim que comecei. Fiz, gostei e depois quis tornar-me profissional. É um primeiro passo. Se as pessoas quiserem continuar, então é preciso um projecto, por exemplo, com bicicletas de aluguer ou algo assim. No meu caso, os meus pais não me apoiaram muito. Não tinham como. A certa altura, quis ter uma bicicleta nova porque a minha antiga já era demasiado velha; também era uma porcaria comparada com as outras! Mas eu trabalhava na altura, por isso comecei a poupar dinheiro. Depois comprei a minha primeira bicicleta de corrida. Custou 3 000 euros. Se tiveres uma vontade realmente forte, encontrarás sempre uma forma de lá chegar. Mas se estás a estudar é diferente porque é realmente difícil arranjar um trabalho ao mesmo tempo. Por tudo isto, é importante ter projectos onde se possa alugar uma bicicleta, por exemplo, por um ano, ou por um valor não muito alto.

Ciclismo 24 por 24: Obrigado, Demi, por teres estado à conversa com o Ciclismo 24 por 24.
Demi Vollering: Estou grata por esta conversa. Até à próxima. Espero que seja em breve!

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