Esta é a história do melhor ciclista do mundo na sua faixa etária. Detentor de recordes que dificilmente algum dia serão batidos. Um exemplo de vida activa, saudável através de pedaladas deviam inspirar o que nunca iremos fazer. Mas todo e cada um de nós devia inspirar-se na proeza de Robert Marchand. Por quê? Comecemos pelo princípio.

Robert Marchand nasceu a 26 de Novembro de 1911 em Amiens. Dos primeiros anos de vida Marchand recordava-se dos sinos das igrejas tocarem a 11 de Novembro de 1918 para anunciar o armistício de uma invasão alemã que começara no Verão de 1914.

Deu as suas primeiras pedaladas aos 14 anos, com um nome falso, visto que era demasiado novo para participar em provas. Revelou-se um ginasta de alto nível mas abandonou o desporto após terem-lhe dito que não ia chegar a lado nenhum com a sua estatura – metro e meio de altura. Na década de 30 foi bombeiro em Paris e um activista nas greves de 1936 que deram azo à revolução na legislação francesa para os trabalhadores.

Robert Marchand em 1933, aos 21 anos.

Casou em 1939 e ficou viúvo quatro anos depois. Militante comunista serviu o seu país durante a II Guerra Mundial onde esteve preso por se opor ao regime nazi. Após ser libertado participou, com 35 anos, no Grand Prix des Nations (uma prova famosa de contra-relógio para amadores) onde terminou no 7º lugar. Posteriormente mudou-se para a Venezuela onde foi camionista e plantador de canas-de-açúcar durante oito anos. Na década de 50 fixou-se no Canadá onde trabalhou como lenhador antes de regressar ao seu país em 1960. Até à reforma, em 1987, executou trabalhos enquanto sapateiro, jardineiro comercial, expositor e vendedor de vinhos.

Voltou a pedalar em 1978, altura em que comprou a sua primeira bicicleta, e não mais parou até ao fim dos seus dias. Em 1992 foi de Paris até Moscovo de bicicleta. De forma amadora participou em oito Bordeaux-Paris (cuja primeira participação, em 2000 aos 89 anos, completou em 36 horas), quatro Paris-Roubaix e doze Ardéchoises. Chegou, inclusive, a desafiar Bernard Hianult numa das várias provas amadoras em que participou.

Em Fevereiro de 2012, e com as cores da sua equipa-associação – Ardéchoise, estabeleceu o novo Recorde da Hora para maiores de 100 anos – uma categoria criada especialmente para si em 2010, percorrendo 24,251 quilómetros no UCI World Cycling Centre em Aigle, Suíça. A 28 de Setembro desse mesmo ano estabeleceu o Recorde de 100 Quilómetros para maiores de 100 anos, percorrendo a distância em após 4:17:27 horas – numa média superior a 23 km/h, num velódromo em Lyon, França. As 300 voltas tiveram cobertura televisiva da France 3 Rhône-Alpes. Qual o segredo? À partida o veterano francês disse, “experimentei de tudo ao longo da minha vida mas nunca abusei. Nunca fumei ou bebi para lá das ocasiões festivas e não me entreguei muito ao sexo feminino”.

O veterano ciclista após terminar os 100 quilómetros num velódromo em Lyon, França.

Praticamente dois anos depois, a 31 de Janeiro de 2014, e já com 102 anos, Robert Marchand quebrou o seu próprio recorde, no National Velodrome of Saint-Quentin-en-Yvelines in Montigny-le-Bretoneux. Percorreu 26,927 quilómetros numa hora, pouco mais de 2 500 metros que o seu anterior recorde, o que equivale a mais 10% do que tinha feito anteriormente. Uma outra curiosidade: a prova do veterano francês foi o primeiro evento oficial deste complexo desportivo avaliado em 74 milhões de euros. Para efeitos comparativos, importa salientar que o actual recorde mundial da hora geral numa bicicleta de estrada convencional foi homologado em 2019 pelo belga Victor Campenaerts (então com 27 anos), que percorreu 55,089 quilómetros numa hora.

Como parar é morrer, a 4 de Janeiro de 2017, no mesmo velódromo, estabeleceu uma marca para a categoria de mais de 105 anos: 22,547 quilómetros numa hora, tendo sido reconhecido pelo Guinness World Records como o ciclista mais velho no activo. Após novo recorde o ciclista francês afirmou que “poderia ter feito melhor se tivesse visto o cartão de aviso para os 10 minutos finais, teria pedalado ligeiramente mais rápido”.

Apesar de um rigor alimentar excepcional, com uma alimentação à base de frutas, vegetais de rejeitar o café e de treinar diariamente uma hora domesticamente, Robert Marchand foi aconselhado pelos médicos a retirar-se na medida em que a sua tensão tendia a disparar quando este pedalava. Mas… Em Fevereiro do ano seguinte regressou ao velódromo habitual para competir numa prova de 4 000 metros, que completou. “Sou eu que decido e eu quero andar de bicicleta”, afirmou. Mais tarde, em Outubro regressou ao velódromo do costume mas a UCI recusou a certificar mais recordes ao veterano, por precaução.

Celebrou os seus 107 anos com um passeio de bicicleta de 20 quilómetros em Ardèche, acompanhado por outros 30 ciclistas da sua equipa-associação. Durante o passeio passara pela Col du Robert Marchand, uma pequena colida apelidada com o seu nome (por ocasião do seu 103º aniversário) como forma de agradecimento por este participar nas provas da equipa-associação desde a primeira edição, em 1992. Após o passeio lamentou-se “do frio que sentiu pois não se tinha vestido apropriadamente para o tempo que estava”.

Marchand a iniciar o seu passeio de 107º aniversário, apoiado por jovens fãs.

Pousou a sua bicicleta de estrada após o 108º aniversário devido à perda de audição mas continuou a pedalar diariamente na sua bicicleta estática. Voltou a ser notícia durante os confinamentos oriundos da pandemia de covid-19 pelo exemplo que era, apesar de não querer “ser tratado como um fenómeno”. Recusou-se apelidar a pandemia de guerra porque “a guerra é uma vontade humana (…) por questões mais ou menos financeiras e não por qualquer outra coisa. Este é um vírus que vem da natureza. Devemos lutar contra ele, porque ele também é um inimigo. Tentamos sobreviver, mas não chamo isso de guerra”.

Sobreviveu às duas Guerras Mundiais, viveu três repúblicas francesas, além de ter conhecido um total de 17 inquilinos no palácio presidencial do Eliseu. Acompanhou 98 edições do Tour de France. À altura da sua morte, era o quarto homem mais velho de França, o único francês vivo nascido em 1911 e um dos últimos sobreviventes da II Guerra Mundial. Era, ainda, o membro mais antigo da CGT – Trade Union (equivalente à CGTP-IN portuguesa), com 90 anos de associado – um (outro) recorde de longevidade.

O veterano francês durante o confinamento, na sua bicicleta estática.

Faleceu a 22 de Maio de 2021, aos 109 anos mas continuará vivo na sua região – Mitry-Mory, Seine-et-Marne, Ile-de-France – onde vários objectos que deixou à comuna continuarão a poder ser vistos.

Vida eterna a Robert Marchand!

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